O Supremo Tribunal Federal e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência

Há poucos dias o Supremo Tribunal Federal (STF) publicou uma decisão, no RMS 32732, em que incidem as cláusulas de proteção  fundadas na  Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência , disponível aqui

No caso, o recurso ao STF foi feito sobre decisão que negou o direito de a candidata , que apresenta encurtamento de 2,73cm no membro inferior direito, estar na lista dos candidatos portadores de necessidades especiais de determinado concurso, sob o fundamento de que não havia sido comprovado que o encurtamento de membro inferior direito acarretasse dificuldades para o desempenho das atribuições administrativas inerentes ao cargo para o qual a candidata fora aprovada. 

A decisão do STF reconheceu o direito de a candidata ser enquadrada como portadora de necessidades especiais e nos trouxe argumentos esclarecedores sobre a incidência, no Brasil, da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, conforme destacamos abaixo:

EMENTA: Concurso público. Pessoa  portadora de deficiência. Reserva  percentual de cargos e empregos públicos  (CF, art. 37, VIII). Ocorrência, na espécie, dos  requisitos necessários ao reconhecimento   do direito vindicado pela recorrente.  Atendimento, no caso, da exigência de  compatibilidade entre o estado de deficiência  e o conteúdo ocupacional ou funcional do cargo público disputado, independentemente de  a deficiência produzir dificuldade para o  exercício da atividade funcional. Pessoa portadora de necessidades especiais cuja  situação de deficiência não a incapacita nem  a desqualifica, de modo absoluto, para o exercício das atividades funcionais.  Inadmissibilidade da exigência adicional de a situação de deficiência também produzir  “dificuldades para o desempenho das funções do cargo”. Reconhecimento, em favor de pessoa comprovadamente portadora de necessidades especiais, do direito de investidura em cargos públicos, desde que – obtida prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos dentro da reserva percentual a que alude o art. 37, VIII, da  Constituição – a deficiência não se revele  absolutamente incompatível com as  atribuições funcionais inerentes ao cargo ou  ao emprego público. Incidência, na espécie,  das cláusulas de proteção fundadas na  Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos  das Pessoas com Deficiência. Incorporação  desse ato de direito internacional público,  com eficácia e hierarquia de norma  constitucional (CF, art. 5º, § 3º), ao  ordenamento doméstico brasileiro  (Decreto nº 6.949/2009). Primazia da norma mais favorável: critério que deve reger a interpretação judicial, em ordem a tornar  mais efetiva a proteção das pessoas e dos  grupos vulneráveis. Precedentes. Vetores que informam o processo hermenêutico  concernente à interpretação/aplicação da  Convenção Internacional sobre os Direitos das  Pessoas portadoras de deficiência (Artigo 3).  Mecanismos compensatórios que concretizam, no plano da atividade estatal, a  implementação de ações afirmativas.  Necessidade de recompor, pelo respeito à  diversidade humana e à igualdade de  oportunidades, sempre vedada qualquer ideia  de discriminação, o próprio sentido de  igualdade inerente às instituições  republicanas. Parecer favorável da  Procuradoria-Geral da República. Recurso  ordinário provido.(grifo nosso)

Seguem trechos da decisão:


"Há a considerar, ainda, por relevante, a Convenção Internacional das  Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência assinada em  Nova York (2007) e incorporada, formalmente, ao plano do direito positivo  interno brasileiro pelo Decreto nº 6.949/2009.

Torna-se digno de nota registrar que essa Convenção Internacional, por  veicular normas de Direitos Humanos, foi aprovada pelo Congresso  Nacional pelo Decreto Legislativo nº 186/2008, cuja promulgação  observou o procedimento ritual a que alude o art. 5º, § 3º, da Constituição da  República, a significar, portanto, que esse importantíssimo ato de direito  internacional público reveste-se, na esfera doméstica, de hierarquia e de  eficácia constitucionais.

A Convenção Internacional em referência, ao estabelecer normas  destinadas a assegurar à pessoa portadora de deficiência (ou portadora de  necessidades especiais) o direito de acesso ao trabalho e ao emprego  (Artigo 27), prescreve regras cuja eficácia legitima a pretensão recursal ora deduzida na presente causa, eis que a “mens” que informa a cláusula  normativa fundada no inciso VIII do art. 37 da Constituição da  República visa a instituir mecanismos compensatórios que traduzam ações  afirmativas a serem implementadas pelo Poder Público e que buscam, na  realidade, “promover e proteger os direitos e a dignidade das pessoas com  deficiência”, corrigindo “as profundas desvantagens sociais” que afetam tais  pessoas, em ordem a tornar efetiva “sua participação na vida econômica,  social e cultural, em igualdade de oportunidades, tanto nos países em  desenvolvimento como nos desenvolvidos” (Preâmbulo, “y”).

Veja-se, portanto, que o tratamento diferenciado a ser conferido à pessoa  portadora de deficiência, longe de vulnerar o princípio da isonomia, tem  por precípua finalidade recompor o próprio sentido de igualdade que anima  as instituições republicanas, motivo pelo qual o intérprete há de observar,  no processo de indagação do texto normativo que beneficia as pessoas  portadoras de deficiência (ou de necessidades especiais), os vetores que,  erigidos à condição de “princípios gerais”, informam o itinerário que  referida Convenção Internacional estabelece em cláusulas impregnadas de  autoridade, hierarquia e eficácia constitucionais (CF, art. 5º, § 3º), como  precedentemente já assinalado.

Importante referir, nesse sentido, a percepção que o Supremo  Tribunal Federal, em sua jurisprudência, tem revelado a propósito das  relações entre o direito interno brasileiro e as convenções (ou tratados)  internacionais de direitos humanos (CF, art. 5º, §§ 2º e 3º), de um lado, e o  processo de sua interpretação jurídica, de outro, nos casos em que se  evidenciar, entre tais fontes do direito, situação de eventual antinomia:

“HERMENÊUTICA E DIREITOS HUMANOS: A NORMA  MAIS FAVORÁVEL COMO CRITÉRIO QUE DEVE REGER A  INTERPRETAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO.
- Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade  interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais  de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico  básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção  Americana sobre Direitos Humanos), consistente em atribuir  primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana,  em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica.
- O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que  prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser  aquela prevista no tratado internacional como a que se acha  positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a  máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações  constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos  indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a  sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da  pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à  alteridade humana tornarem-se palavras vãs.
- Aplicação, ao caso, do Artigo 7º, n. 7, c/c o Artigo 29,  ambos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de  São José da Costa Rica): um caso típico de primazia da regra mais  favorável à proteção efetiva do ser humano.”
(HC 93.280/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO)


Daí porque se torna relevante observar, para efeito de conferir maior eficácia e preponderância à norma mais favorável à pessoa portadora de  deficiência (que é, em essência, um ser integral, não obstante suas  necessidades especiais), os vetores definidos no Artigo 3 da Convenção  das Nações Unidas sobre os Direitos e Proteção às Pessoas portadoras de  deficiência (e aplicáveis ao caso ora em exame), que atribuem plena  legitimidade à pretensão jurídica que a parte ora recorrente deduziu nesta  sede processual, destacando-se, em tal contexto, por expressivos, os  princípios referentes (1) à dignidade das pessoas, (2) à sua autonomia  individual, (3) à sua plena e efetiva participação e inclusão na sociedade,  (4) ao respeito pela alteridade e pela diferença e aceitação das pessoas  portadoras de deficiência, sem qualquer discriminação, como valores  inerentes à diversidade humana, e (5) à igualdade de oportunidades."


Dessa forma, o poder regulamentar não pode restringir os Direitos Humanos. Em outras palavras, não cabe ao Decreto n. 3.298/1999 (norma infraconstitucional, ou seja, abaixo das normas da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Pessoas com Deficiência) excluir o enquadramento das pessoas com deficiência auditiva unilateral.

Esperamos que em breve sejam editadas súmulas nos Tribunais Superiores que reconheçam expressamente o nosso  enquadramento (das pessoas com deficiência auditiva unilateral) como deficientes para acabar com a insegurança jurídica causada pelas normas distorcidas do Decreto n. 3.298/99. Entendemos que esse Decreto é ilegal, porém ele ainda é adotado pela Administração Pública Federal.  Por isso a necessidade urgente de um reconhecimento expresso pelo Poder Judiciário do nosso enquadramento.

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