Da inconstitucionalidade do Decreto nº 3.298/99


O artigo 37, inciso VIII, da Constituição Federal de 1988 assegura a participação de pessoas portadoras de deficiência a cargos e empregos públicos.

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
(...)
            VIII - a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;”

E o artigo 227, II, da Constituição Federal de 1988 assegura a criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental:

“Art. 227. (...)
 (...)
II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)

Íntegra do texto constitucional: aqui

A Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989 encarregou-se de definir os critérios do art. 37, VIII da Constituição, e dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência.

Íntegra da Lei nº 7.853/89: aqui

O Governo Federal editou o Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, regulamentando a Lei 7.853/89 e definindo os contornos da expressão "pessoas portadoras de deficiência" no artigo 3º, I e II:

            “Art. 3º Para os efeitos deste Decreto, considera-se:
I - deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;
II - deficiência permanente – aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e
III - incapacidade – uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida.” (grifo nosso)

Até 2004, o Decreto nº 3.298/99 assegurava o enquadramento das pessoas com perda auditiva unilateral e definia a deficiência auditiva como:

“ II - deficiência auditiva – perda parcial ou total das possibilidades auditivas sonoras, variando de graus e níveis na forma seguinte:
a) de 25 a 40 decibéis (db) – surdez leve;
b) de 41 a 55 db – surdez moderada;
c) de 56 a 70 db – surdez acentuada;
d) de 71 a 90 db – surdez severa;
e) acima de 91 db – surdez profunda; e
 f) anacusia;”

Naquele ano, porém, o Governo Federal editou o Decreto nº 5.296, de 02 de dezembro de 2004, que deu nova redação ao art. 4º do Decreto anterior (Decreto nº 3.298/99), excluindo os portadores de perda auditiva unilateral do conceito de deficiência auditiva. Com a nova redação, apenas são considerados portadores de deficiência auditiva a pessoa portadora de perda bilateral, parcial ou total.
  
“Art. 4º É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias:
(...)
II - deficiência auditiva - perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz;”

Íntegra do Decreto nº 3.298/99: aqui
Íntegra do Decreto nº 5.296/2004: aqui

 Por haver incoerência interna na regulamentação do referido Decreto nº 3.298/99 após a alteração do Decreto nº 5.296/2004, há necessidade, hoje, de ir ao Poder Judiciário para o reconhecimento e o enquadramento da perda auditiva unilateral como deficiência auditiva, com a interpretação concomitante dos artigos 3º e 4º, II do Decreto nº 3.298/99.

Em 03 de agosto de 2006, o Superior Tribunal de Justiça, esclareceu essa incoerência legislativa pela primeira vez, no julgamento do RMS 20.865/ES, o Relator Ministro PAULO MEDINA decidiu pela aplicação errônea da Resolução nº 17/2003 do Conade, da Lei nº7.853/89 e dos Decretos nºs 3.298/99 e 5.296/2004.

“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA - CANDIDATO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA AUDITIVA - RESERVA DE VAGA NEGADA PELA ADMINISTRAÇÃO DEVIDO À COMPROVAÇÃO DE DEFICIÊNCIA AUDITIVA UNILATERAL - MATÉRIA DE DIREITO - POSSIBILIDADE DE IMPETRAÇÃO DO WRIT – APLICAÇÃO ERRÔNEA DA RESOLUÇÃO Nº 17/2003 DO CONADE - LEI Nº 7.853/89 - DECRETOS Nºs 3.298/99 e 5.296/2004 – DIREITO LÍQUIDO E CERTO - RECURSO PROVIDO.
1. A matéria de que trata os autos, qual seja, saber se a surdez unilateral vem a caracterizar deficiência física ou não, é matéria de direito, que não exige dilação probatória, podendo, por conseguinte, ser objeto de mandado de segurança.
2. A reserva de vagas aos portadores de necessidades especiais, em concursos públicos, é prescrita pelo art. 37, VIII, CR/88, regulamentado pela Lei nº 7.853/89 e, esta, pelos Decretos nºs 3.298/99 e 5.296/2004.
3. Os exames periciais realizados pela Administração demonstraram que o Recorrente possui, no ouvido esquerdo, deficiência auditiva superior à média fixada pelo art. 4º, I, do Decreto nº 3.298/99, com a redação dada pelo Decreto nº 5.296/2004. Desnecessidade de a deficiência auditiva ser bilateral, podendo ser, segundo as disposições normativas, apenas, parcial.
4. Inaplicabilidade da Resolução nº 17/2003 do CONADE, por ser norma de natureza infra-legal e de hierarquia inferior à Lei nº 7.853/89, bem como aos Decretos nºs 3.298/99 e 5.296/2004.
5. Recurso ordinário provido.”
(RMS 20.865/ES, Rel. Ministro PAULO MEDINA, SEXTA TURMA, julgado em 03/08/2006, DJ 30/10/2006 p. 418). (grifo nosso)

Íntegra do RMS 20.865/ES: aqui

Apesar de a jurisprudência estar se pacificando neste sentido, até hoje o Decreto nº 3.298/99, alterado pelo Decreto nº 5.296/2004 não foi alterado para corrigir sua incongruência interna e nem foi editada uma súmula pelos Tribunais Superiores para o enquadramento da perda auditiva unilateral como deficiência auditiva.

Desde 04 de abril de 2012, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 3.653/2012, de autoria do Deputado Marçal Filho (PMDB/MS) para considerar a hipocusia ou disacusia unilateral como deficiência auditiva. EMENTA “Estabelece que a deficiência auditiva é a perda unilateral ou bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000 Hz).”

Íntegra do PL nº 3.653/2012: aqui


Este é o entendimento que deve prevalecer: a perda auditiva unilateral considerada como deficiência auditiva. 

Mas será que a legislação infraconstitucional (no caso o Decreto nº 3.298/99) precisa ser alterada para dar o reconhecimento da perda auditiva unilateral como deficiência auditiva?

A princípio não, porque a partir de 2009, com a incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, promulgada no Brasil pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, conforme o procedimento do §3º do art. 5º da Constituição, com status de Emenda Constitucional, o conceito de pessoa portadora de necessidades especiais (PNE) passou a ser definido como dispositivo constitucional.

‘Artigo 1
Propósito
O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e eqüitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.

Íntegra do Decreto nº 6.949/09: aqui


Ora, o conceito de pessoas com deficiência, após a incorporação do Decreto nº 6.949/09, passou, portanto, a ter status constitucional e não pode haver um Decreto (infraconstitucional) que dê interpretação diversa da nova definição de pessoa com deficiência. A lei infraconsitucional não pode ser inconstitucional.

Propostas do Blog da Surdez Unilateral

Para esclarecer de uma vez por todas a questão e assegurar o pleno direito dos portadores de perda auditiva unilateral, evitar as inúmeras demandas judiciais, faz-se necessário que o Governo Federal altere a redação do Decreto nº 3.298/99 para:
a) constar a definição de pessoas com deficiência do Decreto nº 6.949/09;
b) corrigir sua incongruência interna de excluir as pessoas com perda auditiva unilateral do conceito de pessoa com deficiência (art. 4º, II) passando a ter, conforme o Projeto de Lei nº 3.653/2012, de autoria do Deputado Marçal Filho (PMDB/MS), sua redação da seguinte forma: "deficiência auditiva é a perda unilateral ou bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000 Hz).”

E, enquanto a redação do Decreto nº 3.298/99 não é corretamente alterada para reconhecer a perda auditiva unilateral como deficiência auditiva, que o Supremo Tribunal Federal  e/ou o Superior Tribunal de Justiça  confirmem a jurisprudência que está se pacificando no reconhecimento da perda auditiva unilateral como deficiência auditiva por meio da edição de Súmula, dando aos portadores de perda auditiva unilateral o mesmo enquadramento dos portadores de visão monocular (STJ Súmula nº377: aqui)

Este blog surge com o propósito de fortalecer este debate e conseguir as alteração necessárias para o reconhecimento da perda auditiva unilateral como deficiência auditiva, assegurando o pleno direito humano  deste portadores de necessidades especiais. 

Comentários

  1. Bom dia..
    Primeiramente gostaria de desejar meus parabens pelo blog, muito legal e esclarecido.

    Tenho uma duvida, sou deficiente auditivo unilateral e gostaria de saber se existe alguma alternativa para conseguirmos ingressar em empresas privadas, pois so vejo falarem sobre concursos.

    fico no aguardo, desde ja agradeço.

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  2. Oi, Diego,

    Fico contente que tenha gostado do blog!

    Falamos muito em concurso público, pois é a forma como encontramos para questionar judicialmente o Decreto que não reconhece a deficiência auditiva unilateral.

    Infelizmente como a legislação não reconhece a deficiência auditiva unilateral, a tendência é que a iniciativa privada siga a literalidade do Decreto e não reconheça a unilateralidade da surdez.

    Por isso é necessário que unamos para conseguir alterar a legislação.

    Att.


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  3. ola gostaria de saber se ha jurisprudencia acerca da interpretaçao extensiva do art.4 do decreto 3298, no sentido de analisar a média das frequencias e nao somente cada frequencia isoladamente?? obrigada

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  4. Não sou do ramo jurídico, mas entendo um pouco do assunto. Tenho surdez severa (perda média de 85 db) no ouvido esquerdo. Gostaria apenas de deixar o seguinte entendimento...
    A Constituição é cristalina ao afirmar que:
    "VIII - a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;”
    Reparem que é a LEI que tem que definir os critérios de admissão e não o DECRETO. Ressalto que o DECRETO é mero ato de vontade unilateral do chefe do poder executivo, seja ele Presidente, Governador ou Prefeito. Não há um processo de debate junto aos representantes do povo, como no processo legislativo. Exatamente por esse motivo é que a Constituição reservou esse assunto para a LEI, por ser um tema sensível...
    Sendo assim, um Decreto não pode regular matéria que seja privativa de LEI, ainda mais quando isso está EXPRESSO na CF/88.
    Ainda não vi uma única tese jurídica a esse respeito, muito embora seja tão obvio...
    Abs,

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  5. Eu tenho perca auditiva de grau de moderado a severo e fico em "cima do muro", quando o assunto é prestar concurso concorrendo com pessoas como deficiência. As áreas que eu possuo formação são: técnico em mecânica e técnico em petróleo e gás, áreas que segundo editais, exigem 100% da física do indivíduo. E o que fazer? Se eu não posso concorrer as vagas destinadas a pessoas com deficiência, por a perda auditiva unilateral não está inserida no decreto da lei, e também não sou considerado pessoa normal? Irei perder anos de minha vida? TEM QUE RESOLVER ISSO LOGO!!!

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  6. Sou uma recente militante dessa discussão, tendo em vista que pretendo fazer jus ao meu direito constitucional de ingressar no serviço público dentro das vagas para deficiente. Farei um audiograma para definir o meu enquadramento e ,sendo ele de perda auditiva unilateral, não hesitarei em unir esforços para exercer o meu direito. Sempre achei que unidos é que fazemos valer nossos direitos. Adorei a oportunidade de conhecer o blog.! Percebo hoje, em meu ambiente de trabalho (já sou servidora pública municipal concursada - ampla concorrência), o quanto a minha deficiência auditiva está me acarretando déficit social e até mesmo de aprendizado..Larissa LD

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